Crtr 06

A presença das mulheres no mercado de trabalho e, especialmente na área das técnicas radiológicas, começou a se intensificar a partir do início da 1ª Guerra Mundial, em 1914. Elas passaram a ocupar os postos de trabalho deixados pelos homens que iam para as trincheiras e para o front de batalha, encarregadas da missão de sustentar a economia, cuidar das famílias e suprir a grande demanda por alimentos, armas e outros suprimentos necessários em tempos de conflito. Era o que se chamava “esforço de guerra” pelo país. Havia um mundo destruído a se reconstruir e esse desafio serviu como mote para o desenvolvimento e a autonomia das próprias trabalhadoras também.

Os Estados Unidos foi o país que se adaptou mais rápido às mudanças da época e melhor aproveitou o momento para se tornar potência global. Nesse contexto de mundo fabril e economia em ebulição, milhares de mulheres estadunidenses se tornaram operárias em fábricas dos mais variados ramos da economia, entre eles o segmento radiológico e nuclear. Não por acaso, foi nos EUA que as operárias expostas aos raios X começaram a morrer em decorrência da exposição radioativa e, não obstante, a se organizar para exigir melhores condições de vida e de trabalho.

Naquela época, as empresas vendiam a ideia de que pequenas doses do elemento químico Rádio eram benéficas para a saúde. As pessoas compravam e usavam cosméticos, manteiga, leite e pasta de dente com a substância, certos de que isso lhes daria longevidade. Entretanto, essas crenças se baseavam apenas em “pesquisas” conduzidas pelos próprios fabricantes, que estavam lucrando alto com as vendas.

Um episódio que mudou para sempre as condições de uso e emprego da radiação ionizante aconteceu na United States Radiation Corporation (USRC), que ficava na cidade de Orange, em Nova Jersey. Nesta fábrica, as mulheres, sobretudo as mais jovens usavam suas pequenas mãos para fazer um traçado artesanal e pintar mostradores e relógios com uma tinta luminosa, a base do elemento químico Rádio. Movimento contínuo, levavam os pincéis à boca para apontá-los, sem saber os riscos que corriam. A essa altura, já se conhecia os efeitos biológicos causados pelo contato com a radiação ionizante. Entretanto, essas informações eram acobertadas e o trabalho era considerado “elitizado”, com salários até três vezes maiores que o de outras categorias. Essas operárias ficaram conhecidas como Radium Girls, ou seja, as “as meninas do rádio”.

USRC não oferecia proteção radiológica para as Radium Girls e negava que a atividade fosse de risco. As operárias sequer eram alertadas sobre os riscos ocupacionais da atividade que exerciam. A grande empresa as fazia acreditar que era seguro trabalhar com rádio. Contudo, em 1922 ocorre a primeira morte por contaminação. A operária Mollie Maggia perde a vida com apenas 24 anos, literalmente “caindo aos pedaços”. Ela perdeu os dentes, o céu da boca e a mandíbula inteira.  Em seu rosto, formaram-se imensos abcessos, que se transformaram depois em infecções hemorrágicas e a levaram à morte. A mando dos donos da empresa, a junta médica declarou que a paciente havia morrido de Sífilis.

O processo de investigação das doenças causou ainda mais danos às vítimas. Os médicos-investigadores usavam exames de raios X para entender o que ocorria e, assim, contribuíam ainda mais para a piora do quadro das trabalhadoras doentes. O rádio estava se acumulando nos corpos das operárias e alvejando seus ossos. A radiação do elemento químico estava literalmente furando as meninas vivas. As pernas das mulheres encurtavam e apresentavam fraturas espontâneas. Ficou comprovado depois que vários desses exames eram fraudulentos e que existia uma campanha de difamação contra as Radium Girls, para tirar a credibilidade de seus depoimentos. Não por acaso, era atribuído a elas doenças venéreas, com o objetivo de manchar suas reputações.

Inconformada com a situação, Grace Fryer, uma das operárias da USRC e que também foi contaminada, passou a liderar a luta para ter uma representação jurídica diante do poder econômico da empresa. Ela e seu grupo reivindicavam indenização para as jovens atingidas pela contaminação e para as suas famílias. Em 1927, o advogado Raymond Benny assume o caso e o processo ganha repercussão mundial.

Com o passar do tempo, a exposição aos raios X sem proteção radiológica e em turnos de trabalho superiores a 12 horas fez mais vítimas. As operárias suspeitavam o que podia estar ocorrendo e passaram a registrar os casos estranhos em diários, depoimentos e testemunhos sobre o sofrimento que passavam. Essas anotações causaram revolta entre trabalhadores e chamou a atenção do governo dos EUA que, pressionado, se viu obrigado a entrar na história e legislar sobre o assunto, com base em evidências que não podiam mais ser negadas. A partir desse movimento, houve uma verdadeira revolução nas legislações de proteção ao trabalhador.

Mesmo diante das evidências, a USRC continuou negando por mais de dois anos a relação entre a exposição radioativa, as doenças e as mortes das operárias. Somente quando morreu um funcionário homem da empresa, o médico Harrison Martland criou os testes que comprovaram o envenenamento das vítimas por rádio. Coube às Radium Girls continuar lutando para mobilizar a sociedade e as universidades em torno do caso, até se provar cientificamente a relação causal entre a perda das vidas e o trabalho a que essas pessoas estavam submetidas. Estima-se que apenas nos EUA cerca de 4 mil trabalhadores foram contaminados na época.

Após a confirmação da causa das mortes, as instalações da URSC foram fechadas em 1927. O caso foi encerrado na justiça no ano seguinte, quando a maior parte das vítimas já estava morta ou severamente doente. Ficou constatado que a companhia atrasou propositalmente o andamento do processo, causando ainda mais mortes que poderiam ser evitadas. Em novembro de 1928, Dr. Von Sochocky, inventor da tinta à base de rádio, também se tornou vítima de sua própria invenção, ao morrer de anemia aplástica.

Por causa das Radium Girls, o governo dos EUA elaborou as primeiras normas de segurança do trabalho e determinou limites para a exposição radioativa. Essas normas foram melhor desenvolvidas e incorporadas no mundo inteiro. No Brasil, ainda na década de 1950, foi promulgada a Lei n.º 1.234, que limitou a carga horária de trabalho em 24 horas semanais, garantiu direito a férias de 20 dias por semestre e reconheceu a insalubridade das técnicas radiológicas em grau máximo.

Até hoje, esses direitos estão em vigor e não existem atenuantes para mudar a legislação, pois a radiação ionizante de hoje é a mesma de 100 anos atrás e os equipamentos de alta resolução emitem ainda mais raios ionizantes do que antes.

FONTE: http://conter.gov.br/